Durante este mês (março de 2024), foram publicados os diplomas legais que concretizam o pacote de medidas aprovadas em janeiro deste ano para simplificação de procedimentos urbanísticos, cujo pacote legislativo é comumente designado como “Simplex Urbanístico”. Este pacote legislativo concretiza diversas alterações significativas no âmbito dos procedimentos urbanísticos, procedendo a alterações em diplomas legais estruturantes nesta matéria.
Para além da revogação da obrigatoriedade de apresentação de determinados títulos urbanísticos nos atos de transmissão da propriedade de prédios urbanos - que será o tema principal deste artigo - o “Simplex Urbanístico” produziu, ainda, alterações significativas no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (“RJUE”), no Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (“RJIGT) e no próprio Código Civil, procedendo, também, à revogação integral do Regulamento Geral da Edificação Urbana, que será substituído, a partir de 1 de junho de 2026, por um novíssimo Código da Construção.
Como nota introdutória, destacaríamos, com especial incidência sobre o comprador mais comum, a alteração produzida no Código Civil, pela qual passa a ser possível, sem o prévio consentimento da assembleia de condomínios, a alteração do uso de frações autónomas quando se pretenda que a sua utilização passe a estar destinada à finalidade habitacional. Quanto a esta matéria, importa acautelar que embora não seja necessária a autorização do condomínio, apenas se poderá proceder à alteração do uso para fins habitacionais quando tal seja possível à luz das normas, regulamentos e planos diretores municipais (“PDM”) aplicáveis ao prédio urbano.
Ainda sob o ponto de vista do procedimento administrativo, a simplificação de procedimentos resulta de muitas outras alterações de fundo realizadas através da aprovação deste pacote legislativo, tais como (no “RJUE”) a adoção de procedimentos de comunicação prévia com desnecessidade de controlo prévio pelas entidades competentes, verificando-se um controlo a posteriori ou no decorrer da atividade urbanística, ou (no “RJIGT”) a simplificação do procedimento de construção ou reconversão de edifícios para fins habitacionais.
Assim, pela análise das alterações aqui destacadas e por todas as restantes especificidades que escolhemos não incluir no presente artigo, facilmente se conclui que o pacote “Simplex Urbanístico” tem como principal finalidade promover uma aceleração do aumento do número de fogos habitacionais, seja através de novas construções, bem como da reconversão do edificado já existente.
De entre as medidas aprovadas, destacamos, com enorme relevância para os tipos de contratos de compra e venda imobiliária mais comummente celebrados, a dispensa de apresentação de licenças de construção, de licenças de utilização e da Ficha Técnica de Habitação nos atos de transmissão de propriedade de prédios urbanos em construção (no caso da licença de construção) ou já edificados.
O mérito desta alteração concreta tem merecido algumas dúvidas por parte de conservadores, notários, advogados e solicitadores - os profissionais habitualmente responsáveis nas diferentes fases dos processos de transferência de propriedade -, por, no entender destes profissionais, desta dispensa poder resultar um descuramento ou um relaxamento, por parte do comprador, na averiguação relativamente ao cumprimento dos requisitos urbanísticos para a utilização dos imóveis adquiridos.
De facto, verifica-se que será muito difícil para o comprador reverter os efeitos do ato de transmissão da propriedade, ficando assim responsável, a partir do momento em que se torna proprietário, pela reposição da legalidade. Esta reposição da legalidade poderá significar, quando possível, que o proprietário terá de requerer, perante as entidades públicas competentes, a emissão dos títulos urbanísticos legalmente exigidos para o fim do imóvel que adquiriu, tendo então de iniciar um procedimento burocrático que pode tomar tempo e dinheiro. No entanto, as consequências poderão ser ainda mais drásticas e penosas para o novo proprietário, podendo, em situações limite, ser forçado a demolir a propriedade e/ou a incorrer em processos de contraordenação.
Assim, importa reter que, pese embora alguns títulos urbanísticos deixem de ser exigidos pelos profissionais que lavram a escritura pública ou autenticam o documento particular de compra e venda (duas formas possíveis de celebrar o contrato de compra e venda de imóveis) e pelos que, posteriormente, procedem ao registo da transferência de propriedade do vendedor para o comprador (os conservadores), torna-se ainda mais essencial efetuar uma verificação cuidada e minuciosa dos títulos urbanísticos do imóvel ou precaver esta situação nos contratos celebrados.
Em suma, relativamente a este ponto, é necessário prevenir o comprador comum de que embora o pacote legislativo aprovado em janeiro de 2024 tenha, efetivamente, simplificado diversos procedimentos urbanísticos, com repercussões em atos contratuais privados - como é o caso dos instrumentos de transmissão de propriedade supramencionados (i.e. escritura pública e documento particular autenticado) -, este “simplex” não resulta numa desnecessidade de verificação da situação jurídica do imóvel, nomeadamente para averiguar, previamente à celebração de qualquer contrato, se cumpre os requisitos de utilização, e que não deixaram de estar previstos na legislação portuguesa (habitualmente designada “due diligence”).
Podemos, assim, concluir que, pelo contrário, a necessidade de condução de uma “due diligence” sobre o imóvel que se pretenda adquirir torna-se ainda mais premente no atual quadro que resulta do “Simplex Urbanístico”.