Compreender o direito à não discriminação em Portugal: uma breve análise jurídica
- FIO Legal Solutions
- 9 de mai.
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Atualizado: há 2 dias

Introdução
O direito à não discriminação em Portugal constitui uma área em constante evolução, ancorada nas garantias constitucionais e moldada por normativos jurídicos internos e europeus. Desde a adesão à União Europeia, Portugal tem registado progressos significativos no combate à discriminação; contudo, persistem desafios relevantes ao nível da aplicação prática e da eficácia dos mecanismos de controlo e sanção.
Neste artigo, apresentamos uma visão geral sobre o enquadramento jurídico vigente, destacando a legislação essencial, a jurisprudência mais relevante e algumas implicações práticas, quer para cidadãos, quer para empresas socialmente responsáveis.
Enquadramento constitucional
A Constituição da República Portuguesa de 1976 (doravante, "Constituição") constitui o alicerce fundamental do regime jurídico de proteção contra a discriminação, refletindo a transição do país de um regime autoritário para um Estado de Direito democrático e baseado nos direitos fundamentais.
A Constituição consagra expressamente valores fundamentais como a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a justiça social, em conformidade com os padrões jurídicos contemporâneos da União Europeia e dos instrumentos internacionais de direitos humanos. Destacamos três princípios constitucionais fulcrais: a universalidade (artigo 12.º), a igualdade (artigo 13.º) e a equiparação e igualdade de tratamento de estrangeiros (artigo 15.º).
Artigo 12.º – Princípio da Universalidade
Nos termos do artigo 12.º da Constituição, todos os cidadãos, independentemente da sua nacionalidade, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, salvo quanto a direitos e deveres cuja, titularidade ou exercício seja, reservado, por natureza ou disposição legal, a cidadãos nacionais.
Este princípio tem particular relevância em matérias de imigração, asilo e direitos humanos, ao garantir o acesso aos direitos fundamentais a estrangeiros e apátridas residentes em Portugal.
Em termos práticos, reforça a aplicabilidade direta de normas constitucionais em contextos transfronteiriços, assegurando alinhamento com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Artigo 13.º – Princípio da Igualdade
O artigo 13.º consagra o princípio da igualdade perante a lei, proibindo expressamente a discriminação com base na ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
Este preceito reflete o forte compromisso de Portugal na luta contra a discriminação e é complementado por uma extensa legislação em matéria de emprego, habitação, educação e serviços públicos.
Do ponto de vista jurídico, as implicações práticas desta disposição são significativas.
O artigo 13.º não só constitui fundamento jurídico robusto para litígios individuais em matéria de discriminação, como também tem sido uma peça-chave na interpretação e aplicação da legislação ordinária. Tem sido invocado em inúmeros processos judiciais relacionados com direitos laborais, igualdade de género e proteção das minorias, reforçando a sua proeminência na jurisprudência portuguesa.
Artigo 15.º – Princípio da Equiparação
O artigo 15.º alarga os princípios da igualdade e equidade aos estrangeiros, conferindo-lhes, com algumas exceções constitucionais (designadamente em matéria de direitos políticos ou funções públicas), os mesmos direitos e deveres que os cidadãos portugueses.
Salienta-se ainda a possibilidade de tratamento preferencial aos cidadãos dos países de língua oficial portuguesa, bem como a reciprocidade com Estados-Membros da União Europeia e outros parceiros internacionais.
Esta norma assume especial relevância no apoio e na consultoria jurídica em matéria de imigração, nacionalidade e internacionalização de empresas. Isto porque assegura um nível de segurança jurídica e tratamento não discriminatório aos estrangeiros, promovendo assim a igualdade de tratamento em áreas como o direito do trabalho, o acesso à justiça e os procedimentos administrativos.
Enquadramento legislativo
A par das normas constitucionais, Portugal dispõe de um conjunto significativo de diplomas legais específicos em matéria de combate à discriminação, nomeadamente:
Lei n.º 18/2004, de 11 de maio, transpôs as Diretivas 2000/43/CE e 2000/78/CE, criando um quadro legal contra a discriminação com base na origem racial ou étnica, aplicável tanto ao setor público como ao privado. Esta lei foi revogada pela Lei n.º 93/2017, de 23 de agosto.
Lei n.º 93/2017, de 23 de agosto, consolidou e ampliou o regime anterior, consagrando o princípio da igualdade e a proibição da discriminação sob várias bases legais (em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem) e em diversos domínios, incluindo saúde, educação, habitação e acesso a bens e serviços.
Lei n.º 3/2024, de 15 de janeiro, criou a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), uma entidade administrativa independente, dotada de poderes de autoridade com competências sancionatórias, que funciona junto da Assembleia da República
O Código do Trabalho, em particular os artigos 24.º e 25.º, contém normas claras de proibição da discriminação direta e indireta no acesso ao emprego, nas condições de trabalho e na cessação do vínculo laboral.
Portugal também adotou a Lei n.º 38/2004, de 18 de agosto, que estabelece o quadro jurídico para a prevenção da discriminação com base na deficiência, bem como os mecanismos de aplicação.
No que diz respeito ao Código Penal Português (Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março), existe uma secção dedicada aos crimes relacionados com ações contra a identidade cultural e a integridade pessoal. Esta secção inclui crimes como genocídio, discriminação, discurso de ódio, incitação à violência, bem como tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes e desumanos.
Aplicação e Enquadramento Institucional
A tramitação de situações de discriminação pode ocorrer através de vias judiciais (ações cíveis e penais) ou junto de entidades administrativas com competência específica.
Destaca-se como uma instituição-chave a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), com intervenção prioritária em questões de igualdade de género e discriminação em razão do sexo e da orientação sexual.
De igual forma, a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) aplica o quadro jurídico para prevenir, proibir e combater a discriminação com base na origem racial e étnica, raça, nacionalidade, língua, ascendência e território de origem. A CICDR recebe denúncias em Portugal, instaura os respetivos processos por contraordenação, decide e aplica coimas e sanções acessórias no âmbito dos processos por contraordenação e assegura a articulação com os organismos responsáveis pela não discriminação em casos de discriminação múltipla.
As pessoas que alegam terem sido vítimas de discriminação podem recorrer a:
Ações cíveis para indemnização por danos;
Queixas-crime nos casos de incitamento ao ódio ou discriminação penalmente relevante;
Reclamações administrativas junto das entidades competentes.
As sanções incluem coimas, compensações às vítimas e ordens de cessação de práticas discriminatórias.
Jurisprudência Relevante
Em Portugal, existem muitos fatores que podem constituir motivos de discriminação — desde o género e a idade até ao estatuto social e origem cultural. No entanto, nem todos os incidentes relatados pelas potenciais vítimas chegam aos tribunais.
Um relatório de 2022 da Michael Page revelou que mais de metade dos trabalhadores em Portugal afirmaram ter sofrido alguma forma de discriminação no local de trabalho. A idade foi o motivo mais frequentemente citado, seguido do género, do estatuto socioeconómico e da origem étnica ou cultural.
Um dos casos mais marcantes dos últimos anos em matéria de discriminação em razão do género foi levado ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) no processo Carvalho Pinto de Sousa Morais contra Portugal (2017). Neste caso, o TEDH considerou que o Supremo Tribunal Administrativo (STA) português tinha violado os direitos da requerente ao abrigo do artigo 14.º (proibição da discriminação), em conjugação com o artigo 8.º (direito ao respeito pela vida privada e familiar), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
O TEDH criticou a decisão nacional por se basear em estereótipos – especificamente, a sugestão de que a atividade sexual e a intimidade têm menos importância para as mulheres com mais de 50 anos. A requerente, que sofreu graves danos físicos e psicológicos na sequência de um erro médico, viu a sua indemnização reduzida pelo tribunal nacional, em parte com base na sua idade e no pressuposto de que, sendo uma mulher na casa dos cinquenta anos com filhos, a sua qualidade de vida era menos afetada pela disfunção sexual.
O TEDH concluiu que tal fundamentação refletia visões ultrapassadas e discriminatórias sobre a sexualidade feminina e constituía uma violação da Convenção. Esta decisão histórica chamou a atenção internacional para a necessidade de fundamentações sensíveis ao género nas decisões judiciais, livre de preconceitos ou generalizações.
No acórdão Salgueiro da Silva Mouta contra Portugal, o TEDH condenou o Estado português por discriminação com base na orientação sexual. O requerente, um pai, tinha-lhe sido recusada a guarda da filha, principalmente devido ao facto de ter uma relação homossexual.
Embora os tribunais portugueses tenham alegado que a sua decisão se baseava no interesse superior da criança, o TEDH considerou que o acórdão se fundamentava em pontos de vista discriminatórios em relação à homossexualidade, violando assim os direitos do requerente ao abrigo dos artigos 8.º e 14.º da Convenção. Este acórdão continua a ser um marco no reconhecimento dos direitos LGBTQ+ no sistema jurídico português e nos outros países.
Embora a jurisprudência portuguesa em matéria de discriminação continue a ser relativamente limitada quando comparada com outras jurisdições, há decisões de grande relevância que merecem destaque. Entre os casos mais emblemáticos encontra-se o de Alcindo Monteiro, ocorrido em 1995. Monteiro, cidadão português de origem cabo-verdiana, foi brutalmente assassinado por um grupo de skinheads no Bairro Alto, em Lisboa, num ataque amplamente reconhecido como tendo motivação racial.
Este caso resultou na condenação e prisão de vários dos agressores, por crimes que incluíram discriminação e incitamento ao ódio, e representou um marco fundamental na forma como o sistema judicial português passou a lidar com a violência motivada por discriminação étnico-racial e os crimes de ódio. O seu impacto mantém-se como uma formar de recordar a responsabilidade do sistema de justiça no combate à discriminação racial.
Outro caso profundamente perturbador e juridicamente significativo foi o de Gisberta Salce Júnior, uma cidadã brasileira transgénero, que, em 2006, foi brutalmente agredida e, posteriormente, morta por um grupo de adolescentes na cidade do Porto. Dos catorze jovens envolvidos, apenas um tinha idade para ser julgado como adulto, tendo sido condenado apenas pelo crime de omissão de auxílio à vítima — e não pela agressão em si —, cumprindo oito meses de internamento. Os restantes, por serem inimputáveis penalmente, foram apenas sujeitos a medidas tutelares educativas, tendo a causa oficial da morte sido considerada afogamento.
Apesar da ausência de sanções penais mais gravosas, a reação pública — tanto a nível nacional como internacional — foi de profunda indignação. A morte de Gisberta tornou-se um símbolo da luta pelos direitos das pessoas LGBTQ+ e impulsionou importantes alterações legislativas em Portugal. Em 2011, foi aprovada a Lei n.º 7/2011, de 15 de março, que passou a permitir a alteração do nome e do género nos documentos oficiais sem a necessidade de cirurgia de afirmação de género, exigindo apenas um relatório médico.
Posteriormente, em 2018, com a Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, o país deu mais um passo ao eliminar o requisito de certificação médica, reconhecendo o princípio da autodeterminação de género. Esta lei foi, mais recentemente, alterada pela Lei n.º 15/2024, de 29 de janeiro, que proibiu expressamente as chamadas práticas de "conversão sexual", criminalizando qualquer ato destinado a alterar, limitar ou reprimir a orientação sexual, identidade ou expressão de género de uma pessoa. Desde então, qualquer cidadão com 16 anos ou mais pode alterar legalmente o seu nome e género com base na sua autodeterminação, sem necessidade de qualquer avaliação médica ou psicológica.
Por fim, merece também destaque um caso amplamente divulgado e com significativo impacto jurisprudencial, ocorrido em julho de 2022, na Costa da Caparica. Durante as férias da família dos atores brasileiros Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso, os seus filhos adotivos, Titi (11 anos) e Bless (9 anos), foram alvo de agressões verbais por parte de uma cidadã portuguesa de 59 anos, que proferiu insultos de carácter racista com base na cor da pele e na origem das crianças.
A 14 de novembro de 2024, o Tribunal de Almada condenou a arguida pelos crimes em causa, aplicando-lhe uma pena de prisão, sanções pecuniárias e a obrigação de frequentar um programa de tratamento. Esta decisão foi particularmente relevante por se tratar da primeira condenação em Portugal por crimes raciais cometidos contra crianças, constituindo um precedente importante no combate à discriminação racial no ordenamento jurídico nacional.
Desafios e Perspetivas Futuras
Apesar do quadro legislativo abrangente, persistem ainda alguns obstáculos à aplicação efetiva da legislação antidiscriminação em Portugal, nomeadamente:
Uma limitada consciencialização pública relativamente aos direitos, instrumentos legislativos vigentes e meios de reação;
A reduzida apresentação de queixas, motivada pelo receio de retaliações ou pela falta de confiança nas instituições;
A escassez de jurisprudência consolidada e alguma inconsistência na interpretação de disposições essenciais;
Dificuldades na obtenção de prova suficiente para sustentar as queixas apresentadas.
Ainda assim, Portugal tem vindo a registar avanços significativos. Reformas em curso e campanhas de sensibilização visam reforçar as respostas institucionais e promover uma sociedade mais inclusiva. Iniciativas recentes para fomentar a diversidade no mercado de trabalho e nos processos de recrutamento da Administração Pública são testemunho do compromisso crescente com a promoção da igualdade.
Final Considerations
Embora a jurisprudência em matéria de discriminação ainda esteja em desenvolvimento, os casos referidos acima ilustram como a litigância estratégica pode desempenhar um papel crucial na promoção dos direitos humanos e no combate a todas as formas de discriminação.
Desde as questões de género, raça e orientação sexual até à proteção de pessoas contra a discriminação em razão da ascendência e do território de origem, cada decisão judicial representa não apenas um avanço no reconhecimento jurídico dos direitos, mas também um contributo importante para a sensibilização social.
O Departamento de Direitos Humanos da FiO Legal mantém o seu firme compromisso de apoiar os nossos clientes na defesa dos seus direitos humanos e fundamentais e de promover uma maior igualdade perante a lei — em Portugal, na Europa e a nível internacional.
By Emellin de Oliveira e Victória Costa
By Emellin de Oliveira and Victória Costa