TJUE determina que os Países-Membros devem reconhecer casamentos entre pessoas do mesmo sexo validamente contraídos em outro País-Membro da União
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Autor: Miguel Quintero

Introdução
Atualmente, um pouco mais de metade dos Estados-Membros da União Europeia, isto é 15 dos 27, reconhecem e permitem o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Os restantes 12 ainda não admitem esta forma de casamento nas suas respetivas ordens jurídicas. Pelo que avanços jurisprudenciais nesta matéria são muito importantes.
Em 25 de novembro de 2025, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu o acórdão no Processo C-713/23, Wojewoda Mazowiecki, no qual estendeu aos assentos de casamento a sua jurisprudência relativa ao reconhecimento, por outros Estados-Membros, de atos de estado civil obtidos noutro país da União, como a inscrição de apelido ou a alteração de identidade de género (Acórdão Pancharevo de 14 de dezembro de 2021).
A decisão em questão incide sobre situações em que o Estado-Membro de origem da pessoa, isto é, o Estado do seu nascimento, não reconhece casamentos entre pessoas do mesmo sexo. O acórdão reforça a proteção do direito à vida familiar e garante que o exercício da livre circulação e de residência no espaço europeu não seja esvaziado por práticas administrativas discriminatórias.
O Tribunal declarou que os Estados-Membros devem reconhecer casamentos entre pessoas do mesmo sexo validamente celebrados noutro Estado-Membro, quando resultem do exercício do direito à livre circulação e quando nesse outro Estado tenha sido desenvolvida vida familiar.
Antecedentes do Caso
Até 2018, a jurisprudência do TJUE, no caso Coman, determinava que os vínculos oriundos de casamentos celebrados noutro Estado-Membro apenas tinham de ser reconhecidos para efeitos de livre circulação, não impondo qualquer efeito no estatuto pessoal interno. Agora, em 2025, porém, o Tribunal entendeu que a inexistência total de reconhecimento no Estado-Membro de origem configura uma restrição ao exercício dos direitos de livre circulação e residência, bem como ao direito à vida familiar.
O processo tem origem num reenvio prejudicial (procedimento pelo qual tribunais nacionais pedem ao TJUE interpretação do Direito da União) do Supremo Tribunal Administrativo da Polónia, que submeteu ao TJUE duas questões centrais:
Se um Estado-Membro cuja ordem jurídica não admite o casamento entre pessoas do mesmo sexo pode recusar o reconhecimento de um casamento celebrado noutro Estado-Membro.
Se pode igualmente recusar a transcrição (registo do casamento estrangeiro) no registo civil nacional, quando a transcrição seja necessária para produzir efeitos jurídicos internos ou para permitir o exercício de direitos noutro Estado-Membro onde os cônjuges pretendam residir.
Base jurídica da decisão (UE)

A fundamentação assenta, em particular:
Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, relativos à cidadania da União e ao direito de livre circulação e residência (artigos 20.º e 21.º);
Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que protegem a vida privada e familiar e proíbem a discriminação, incluindo com base na orientação sexual (artigos 7.º e 21.º).
Decisão e fundamentos principais
O Tribunal concluiu que a recusa de reconhecimento ou de transcrição viola o Direito da União, uma vez que impede ou torna excessivamente difícil o exercício dos direitos derivados da livre circulação e afeta de forma grave o direito à vida familiar.
Destacam-se três pilares:
Efeito útil dos direitos da União: obrigar os cônjuges a viver como não casados no Estado de origem, e, por consequência, em qualquer outro Estado da União onde tentem residir, frustra o efeito útil dos direitos de circulação e residência.
Proporcionalidade e ausência de discriminação: práticas administrativas nacionais não podem criar obstáculos desproporcionados ao exercício desses direitos, nem introduzir distinções baseadas na orientação sexual.
Transcrição como meio necessário: quando a transcrição é o único mecanismo existente para produzir efeitos jurídicos internos essenciais ao exercício de direitos previstos no direito da União, esta deve ser efetuada sem discriminação relativamente aos casamentos validamente celebrados noutros Estados-Membros.
Limites e alcance da decisão

O acórdão não impõe aos Estados-Membros o reconhecimento substantivo do casamento entre pessoas do mesmo sexo no seu direito interno. A definição das regras do casamento e do estado civil permanece, em princípio, na esfera da competência nacional.
Contudo, o TJUE entendeu que o exercício dessa competência deve respeitar o Direito da União. A margem de apreciação dos Estados não pode justificar a negação de um ato de estado civil válido noutro Estado-Membro quando tal negação compromete o efeito útil dos direitos à livre circulação e à vida familiar. Assim, quando não exista outro mecanismo eficaz, os Estados devem disponibilizar a via da transcrição, sem discriminação e sem que isso implique reconhecer, para efeitos de direito interno, o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Relação com jurisprudência europeia

A decisão encontra-se em linha com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), da qual se destacam os acórdãos Przybyszewska e Outros c. Polónia e Fedotova e Outros c. Rússia, ambos de 2023, através dos quais o TEDH tem decidido sobre a obrigação positiva dos estados de fornecer um quadro jurídico que ofereça aos casais do mesmo sexo o reconhecimento e proteção adequada.
De igual forma, o TJUE aprofunda o caminho iniciado com o caso Coman (C-673/16) aqui referido, contribuindo para a segurança jurídica de casais do mesmo sexo na União.
Implicações práticas
Para os casais:
O acórdão permite que a alteração do estatuto pessoal decorrente do casamento celebrado noutro Estado-Membro seja reconhecida no Estado de origem e por consequência, em qualquer outro Estado da União onde pretendam residir, assegurando continuidade da sua vida familiar.
Para as autoridades nacionais:
Exige-se a revisão de procedimentos de registo civil para evitar práticas discriminatórias e eliminar obstáculos administrativos que possam comprometer o efeito útil da livre circulação, devendo ser adotados critérios proporcionados e não discriminatórios.
Conclusão

Este acórdão representa um avanço significativo na proteção das famílias formadas por pessoas do mesmo sexo no espaço da União Europeia. Ao garantir que o exercício dos direitos de livre circulação e residência não perde eficácia por via de práticas administrativas discriminatórias, o TJUE reforça a segurança jurídica e a igualdade no quotidiano europeu.
O Tribunal demonstra que o equilíbrio entre a competência nacional em matéria de estado civil e a eficácia do Direito da União exige mecanismos administrativos que assegurem, de forma efetiva e não discriminatória, o reconhecimento dos efeitos essenciais dos atos de estado civil validamente constituídos noutro Estado-Membro.
Fonte oficial
Nota de acompanhamento
A aplicação administrativa desta decisão poderá requerer orientações internas de cada Estado-Membro. Atualizaremos este artigo quando o acórdão integral e eventuais instruções nacionais forem disponibilizados.
Resta saber se Estados, como é o caso da Polónia, adotarão procedimentos de transcrição idênticos aos aplicáveis aos casamentos heterossexuais ou se criarão vias alternativas especificamente dirigidas aos casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
Por: Miguel Quintero




