Do Abandono Voluntário ao Afastamento Coercivo: os Direitos Humanos como Limite à Atuação do Estado
- FIO Legal Solutions
- 21 de mai.
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No passado dia 3 de maio, o Governo português anunciou a intenção de notificar cidadãos estrangeiros em situação irregular para abandonarem voluntariamente o território nacional. Esta medida suscitou uma série de reações públicas, levantando questões jurídicas e processuais sobre o âmbito e os limites da deportação em tais contextos.
Neste artigo, propomo-nos esclarecer, de forma breve, o funcionamento do procedimento administrativo de afastamento coercivo de cidadãos estrangeiros em situação irregular, com especial atenção ao enquadramento jurídico dos direitos humanos que rege e limita tais medidas, tanto ao abrigo do direito nacional, como internacional.
Notas Introdutórias
Cumpre, desde logo, salientar que a permanência ou estada irregular em território nacional não constitui, por si só, ilícito penal, sendo qualificada como contraordenação punível com coima, nos termos da Lei n.º 23/2007, de 4 de junho (Lei dos Estrangeiros).
Por sua vez, a gestão das fronteiras e o combate à imigração irregular constituem prerrogativas soberanas dos Estados, sendo igualmente uma competência da União Europeia (UE), que adotou a Diretiva 2008/115/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, vulgarmente designada por "Diretiva do Regresso". Esta diretiva estabelece que os Estados-Membros devem assegurar a cessação das permanências irregulares através de procedimentos justos, transparentes e que respeitem os direitos fundamentais.
A referida Diretiva da UE define como “situação irregular” a presença, no território de um Estado-Membro, de um nacional de país terceiro que não preencha ou tenha deixado de preencher as condições de entrada e permanência estabelecidas no artigo 5.º do Código das Fronteiras Schengen ou demais disposições legais aplicáveis.
Não decorre, porém, dessa definição qualquer presunção de desproteção jurídica: os migrantes em situação irregular continuam titulares de direitos fundamentais.
Consequentemente, qualquer procedimento de afastamento deve observar integralmente as garantias previstas tanto na ordem jurídica interna, como nas normas internacionais vinculativas para Portugal, incluindo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) e do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).
Neste contexto, importa também destacar o Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular, adotado pelas Nações Unidas, que reforça a necessidade de promover vias legais para a migração, de modo a salvaguardar a dignidade humana e os direitos fundamentais dos migrantes, reconhecendo o seu contributo para os países de origem e de acolhimento.
Em Portugal, de forma resumida, o procedimento seria:
O cidadão estrangeiro que seja identificado numa situação administrativa irregular é notificado para que, num prazo de até 20 dias, abandone voluntariamente o território nacional.
Caso volte a ser identificado no território numa situação de irregularidade por uma autoridade policial, este poderá ser detido.
Caso a detenção se mantenha por mais de 48 horas, um juiz da pequena instância criminal deverá validar a detenção, determinar outra medida de coação ou ainda determinar que o cidadão seja colocado em liberdade.
A AIMA, I.P. deverá ser informada para que, sendo o caso, inicie o procedimento para o afastamento coercivo do cidadão estrangeiro.
Vejamos o que a legislação prevê sobre o abandono voluntário e o afastamento coercivo.
A Notificação para Abandono Voluntário (NAV)
A Diretiva do Regresso estabelece que os Estados-Membros da UE devem emitir uma decisão de regresso relativamente a qualquer estrangeiro que se encontre em situação irregular no seu território (art. 6.º, n.º 1). Contudo, deverão sempre ter em conta o interesse superior da criança, a vida familiar, o estado de saúde do estrangeiro e o princípio da não-repulsão (art. 5.º).
Determina, ainda, a Diretiva que, sempre que viável, deve ser privilegiado o regresso voluntário do cidadão estrangeiro, prevendo-se para tal a concessão de um prazo entre sete e trinta dias para o cumprimento da decisão (art. 7.º).
Em Portugal, esta matéria encontra-se regulada no artigo 138.º da Lei dos Estrangeiros, segundo o qual o cidadão estrangeiro em situação irregular deve ser notificado para abandonar voluntariamente o território nacional no prazo de 10 a 20 dias.
A notificação para abandono voluntário pode ser emitida por:
Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA, I.P.);
Guarda Nacional Republicana (GNR);
Polícia de Segurança Pública (PSP).
A notificação de abandono voluntário é registada no Sistema de Integrado de Informação da Unidade de Coordenação Fronteiras e Estrangeiros (SII UCFE) com especificação da duração da permanência irregular e é também inserida uma indicação de regresso no Sistema de Informação Schengen (SIS) com averbamento do prazo para o abandono por um período de um ano. Estas indicações são eliminada se o cidadão estrangeiro fizer cessar as razões que levam a sua permanência irregular no território português.
Em situações em que exista risco de fuga, o cidadão pode ser notificado para abandonar imediatamente o território, sob pena de incorrer no crime de desobediência qualificada. Caso se verifiquem fundamentos adicionais, designadamente dúvidas quanto à identidade do cidadão ou indícios de entrada fraudulenta, poderá ser instaurado processo de afastamento coercivo, nos termos do artigo 146.º da mesma Lei.
Importa, ainda, referir que o Estado português disponibiliza mecanismos de apoio ao regresso voluntário, em articulação com entidades como a Organização Internacional para as Migrações (OIM), possibilitando a reintegração nos países de origem.
Durante um período de três anos após o regresso, o cidadão que tenha beneficiado deste apoio só poderá ser readmitido em território nacional mediante a restituição dos montantes recebidos, salvo nos casos excecionais previstos na lei, nomeadamente por razões humanitárias.
O Afastamento Coercivo
Decorrido o prazo para abandono voluntário sem que o mesmo se verifique e sendo o cidadão estrangeiro novamente identificado em situação de irregularidade, este poderá ser alvo de processo de afastamento coercivo, nos termos do artigo 145.º da Lei dos Estrangeiros.
O procedimento inicia-se com a detenção do cidadão por autoridade policial competente (GNR, PSP, PJ ou Polícia Marítima), sendo o mesmo presente, no prazo máximo de 48 horas, ao juiz do juízo de pequena instância criminal ou do tribunal de comarca para validação e eventual aplicação de medidas de coação, previstas no artigo 142.º da referida Lei.
Havendo perigo de fuga, as medidas de coação aplicáveis incluem:
Apresentações periódicas às autoridades policiais;
Permanência na habitação com vigilância eletrónica;
Colocação em centro de instalação temporária ou espaço e equiparado, por um período máximo de 60 dias, sujeito a revisão desta decisão a cada 7 dias.
Nos termos do artigo 142.º, n.º 5, o risco de fuga é apreciado com base numa avaliação global da situação pessoal, familiar, social e económica do indivíduo, incluindo:
Ausência de morada conhecida em Portugal;
Ausência de laços familiares no país;
Dúvidas quanto à identidade;
Indícios de ações preparatórias para fugir.
A AIMA, I.P., é a entidade competente para emitir a decisão de afastamento coercivo, devendo a mesma ser devidamente fundamentada, notificada ao interessado e suscetível de impugnação judicial, com efeito devolutivo (ou seja, não suspende o efeito da decisão de afastamento), junto dos tribunais administrativos. É igualmente assegurado o acesso a mecanismos processuais urgentes com efeito suspensivo (aqueles que suspendem o efeito da decisão de afastamento), nos termos da legislação processual administrativa.
Limites legais à expulsão coerciva
De acordo com o artigo 135.º da Lei dos EStrangeiros, o afastamento coercivo não será aplicado a estrangeiros que:
Tenham nascidos em Portugal e aqui sejam residentes;
Sejam pais de menores de nacionalidade portuguesa, residentes em Portugal;
Tenham filhos menores de nacionalidade estrangeira, também residentes em Portugal, relativamente aos quais assegurem o sustento e a educação;
Sejam residentes em Portugal desde antes dos dez anos de idade.
Para além destas proteções legais, o Estado português continua vinculado às suas obrigações decorrentes da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. A jurisprudência do TEDH, bem como a do TJUE em matéria de direitos fundamentais, pode restringir ainda mais o afastamento coercivo quando este viole direitos fundamentais, tais como:
o direito à vida familiar e privada (artigo 8.º da CEDH);
a proibição de tortura ou tratamentos desumanos ou degradantes (artigo 3.º da CEDH);
o princípio da não repulsão, tanto ao abrigo do direito internacional dos refugiados como do direito internacional dos direitos humanos.
Considerações Finais
A compreensão da legislação nacional e europeia, bem como da jurisprudência dos tribunais europeus e internacionais, é essencial para a salvaguarda dos direitos dos cidadãos estrangeiros em processo de afastamento. A invocação oportuna e adequada dos direitos humanos e fundamentais poderá, em determinadas circunstâncias, obstar ao afastamento coercivo, promovendo soluções mais justas e humanas.
Neste enquadramento, a FiO Legal constituiu um Departamento de Direitos Humanos, com vista à prestação de consultoria e assistência jurídico em situações que envolvam imigração e direitos humanos. Este departamento assume como missão a promoção da literacia em direitos humanos, bem como da sua proteção e aplicação efetiva, em plena consonância com os valores que norteiam a nossa prática profissional.
Por Emellin de Oliveira e Victória Costa.