Introdução
No dia 03 de junho de 2024, muitos foram surpreendidos pelo anúncio do Governo em terminar, com caráter imediato, o regime conhecido como “manifestação de interesse”.
O regime foi revogado pela do Decreto-Lei n.º 37-A/2024, de 3 de junho, que alterou a Lei n.º 23/2007, de 4 de julho (Lei dos Estrangeiros), procedendo à revogação dos procedimentos de autorização de residência assentes em manifestações de interesse.
Com a referida revogação, questionava-se (inclusive pela presente autora) se se estaria a colocar em causa as expectativas legítimas daqueles que começaram a contribuir com a Segurança Social com o fim de ver a sua situação migratória regularizada pela via do trabalho.
A publicação no dia 07 de novembro de um regime transitório mais alargado tenta exatamente dar resposta a estes casos, como se depreende da exposição dos motivos apresentados no projeto que deu origem à Lei n.º 40/2024, de 7 de novembro.
O presente artigo informativo visa explicar brevemente no que consiste a manifestação de interesse de modo a destacar o seu impacto nos processos de regularização migratória em Portugal. Ademais, visa-se perceber melhor o âmbito de aplicação – e proteção – do regime transitório das manifestações de interesse, previsto na Lei n.º 40/2024, de 7 de novembro, e possível interpretação da nova redação do dispositivo.
O que são as manifestações de interesse?
Antes de adentrarmos nas manifestações interesse, importa perceber como funciona o regime das autorizações de residência no direito da imigração em Portugal.
Quando um estrangeiro pretende vir residir em Portugal por um período igual ou superior a um ano, independente da finalidade (estudo, trabalho, investigação, união familiar, empreendedorismo, etc.), deverá requerer um visto de residência no Consulado Português no seu país de origem ou de residência habitual.
Nos termos do art. 58.º da Lei dos Estrangeiros, “o visto de residência destina-se a permitir ao seu titular a entrada em território português a fim de solicitar autorização de residência”. Este tipo de visto é válido por quatro meses, período este que deverá o estrangeiro vir para Portugal, juntar a documentação e agendar o seu pedido de concessão de autorização de residência.
A primeira autorização de residência é temporária e, para a sua concessão, deverá o estrangeiro preencher os requisitos gerais do art. 77.º da Lei dos Estrangeiros, nomeadamente, a posse de um visto de residência válido e a presença em território português. Além dos requisitos gerais, há requisitos específicos que dependem da finalidade da residência. Em jeito de ilustração, uma pessoa que queira vir trabalhar em Portugal, deveria apresentar um contrato de trabalho ou uma promessa de contrato de trabalho para que possa requerer uma autorização de residência para o exercício de atividade subordinada.
Em 2017, a Lei dos Estrangeiros foi alterada criando o regime de manifestação de interesse. De forma resumida, este regime permitia a quem tivesse um contrato de trabalho ou uma promessa de contrato de trabalho manifestar o seu interesse em obter uma autorização para o exercício de atividade subordinada (art. 88, n.º 2) ou independente (art. 89, n.º 2) com dispensa da apresentação de um visto de residência prévio.
Em outras palavras, estrangeiros que tivessem entrado legalmente no território, independentemente do tipo de visto (inclusive no âmbito da isenção de visto de curta duração) poderiam submeter uma manifestação de interesse, desde que tivesse um contrato de trabalho, uma promessa de contrato de trabalho ou a atividade aberta como trabalho independente em Portugal.
No entanto, alguns estrangeiros não conseguiam comprovar a sua entrada legal no território, seja porque entraram na União Europeia por Estados-Membros e não informaram a sua presença no território, seja porque entraram no território português já fora do período autorizado (por exemplo, os 90 dias para turismo).
Desta forma, foi criada uma presunção de entrada legal no território, inicialmente prevista para o art. 123.º (em 2018), mas depois adicionada aos art. 88.º e 89.º (em 2019).
A referida presunção previa que sempre que o requerente trabalhasse em território nacional, de forma subordinada (art. 88.º, n.º 6) ou independente (art. 89.º, n.º 5), e tivesse a sua situação regularizada perante a segurança social há pelo menos 12 meses, dever-se-ia presumir que a sua entrada no território era legal.
Assim, estaria preenchido o último requisito para a submissão da manifestação de interesse.
Consequências do fim imediato das manifestações de interesse
Podem-se apontar duas consequências – mais visíveis – para o fim imediato do regime das manifestações de interesse.
A primeira seria a diminuição da disponibilidade de mão-de-obra: de pessoas que tenham autorização de residência para a realização dos trabalhos menos qualificados, que são, sobretudo, necessários durante o período de primavera e verão. A maior procura por mão-de-obra permite, de forma positiva, aos trabalhadores selecionarem melhor as opções mais dignas e as que oferecem melhores condições de retribuição salarial.
A segunda situação é a existência de pessoas numa situação administrativa irregular que estejam disponíveis a exercer esses ditos trabalhos menos qualificados, o que as coloca numa situação de maior vulnerabilidade, suscetível de exploração. O que nos leva a uma situação inversa: excedente de mão-de-obra em situação administrativa irregular que poderá vir a aceitar condições menos dignas e de maior exploração pela necessidade individual e familiar de sobrevivência.
É, contudo, relevante destacar que as manifestações de interesses não estão / estavam ligadas (nem serviam apenas) ao trabalho menos qualificado.
O artigo 89.º, n.º 2, da Lei dos Estrangeiros, previa a concessão de autorização de residência, através da manifestação de interesse, para aqueles que exercessem uma atividade profissional independente ou que fossem imigrantes empreendedores.
Portanto, o referido dispositivo serviu também para regularizar empreendedores e empresários, pessoas que abriram empresas e fizeram negócio em Portugal, mas também vários profissionais liberais, tais como advogados ou consultores internacionais.
Ainda, alguns estudos demonstram – ver o do Observatório das Migrações e o do Banco de Portugal – que grande parte dos trabalhadores estrangeiros em Portugal desempenham trabalhos para os quais são mais qualificados, pelo que existe uma subvalorização das suas qualificações e competências estrangeiras.
A questão da “expectativa legítima”
Se, por um lado, era urgente uma resposta célere à questão das pendências e da indignidade a que muitos imigrantes foram submetidos em Portugal; por outro lado, era gritante a existência de uma norma transitória que considerasse não apenas os pedidos em curso (as manifestações de interesse propriamente ditas), mas também os atos prévios necessários para o cumprimento dos requisitos para as manifestações, os tais doze meses de contribuição para a Segurança Social.
Salvaguardar a expectativa legítima dos estrangeiros que, mesmo em situação imigratória pendente de regularização, inscreveram-se na Segurança Social e contribuíam com o Estado português seria o mais adequado e proporcional no âmbito de um estado de direito.
A revogação desta norma sem um período que considerasse os tais doze meses parecia ferir o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, impondo um défice de proteção aos imigrantes e, em alguns casos, mantendo-os numa situação de indignidade.
A alteração do regime transitório: o revival das manifestações de interesse
No dia 24 de julho, foi apresentada à Assembleia da República o Projeto de Lei n.º 220/XVI/1, que propunha a alteração do regime transitório do Decreto-Lei n.º 37-A/2024, de 3 de junho.
Mais especificamente, o projeto considerava que a o regime proposto em junho de 2024 era “insuficiente e injusto, por não incluir todas as pessoas que, na legítima expectativa de regularizar a sua permanência em território nacional através de manifestação de interesse, haviam já regularizado a sua situação na segurança social, com vista a perfazer os 12 meses indicados no n.º 6 do artigo 88.º Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, estando já inseridos e estabilizados no tecido social e económico português”.
Portanto, a publicação da Lei n.º 40/2024, de 7 de novembro vem colmatar esta lacuna, estabelecendo uma norma transitória mais abrangente, assegurando que não apenas as manifestações de interesse em curso, mas as iniciativas contributivas para perfazer os tais doze meses fossem consideradas e protegidas.
Não se pode, contudo, deixar de referir que a redação da lei de alteração, a seguir transcrita, poderia ter sido melhor.
b) Aos casos em que, comprovadamente, a pessoa demonstre que, anteriormente à sua entrada em vigor, independentemente de ter ou não apresentado a manifestação de interesses, se encontrava inscrita na segurança social e a realizar contribuições ao abrigo de uma atividade profissional subordinada ou independente, com vista a perfazer os 12 meses indicados no n.º 6 do artigo 88.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, na sua redação anterior.
O texto pode gerar ambiguidade ao descrever o seu público-alvo. Apenas numa leitura muito atenta se consegue perceber que estão incluídos no âmbito de aplicação tanto quem já submeteu a manifestação de interesse incompleta (por ainda não ter os 12 meses de contribuição), quanto os que não a submeteram de todo.
Ainda, está explícita na redação a atividade profissional subordinada e a independente, mas é referido apenas o artigo 88.º (trabalho subordinado), estando ausente a indicação do artigo 89.º (trabalho independente). Isto significa que caberá a quem aplica interpretar o dispositivo para incluir, ou não, os trabalhadores independentes sem contrato de prestação de serviços.
Considerações finais
As manifestações de interesse ficaram muito famosas nas comunidades imigrantes e, por vezes, davam quase a sensação de que eram a única via que as pessoas tinham para regularizar a sua situação administrativa.
No entanto, ao lado dos famosos artigos 88.º, n.º 2, e 89.º, n.º 2, a Lei dos Estrangeiros portuguesa conta com outros dispositivos, tais como os previstos nos artigos 122.º e 123.º, que preveem a concessão de autorizações de residência com dispensa de visto prévio.
E o que que isso significa? Significa que existem algumas situações que permitem a estrangeiros que, mesmo não tendo um visto adequado (visto de turista, por exemplo) possam requerer uma autorização de residência e regularizar a sua situação administrativa, permanecendo no território de forma regular.
No que se refere ao artigo 123.º da Lei dos Estrangeiros, é importante lembrar que este foi um dispositivo muito utilizado antes das alterações de 2017 (as que criaram as manifestações de interesse). Este artigo, que não foi alterado pelo Decreto-lei n.º 37.º-A/20254, de 03 de junho, prevê que, a título excecional, mediante uma proposta do Conselho Diretivo da AIMA, I. P., ou por iniciativa do membro do Governo responsável pela área das migrações, seja concedida uma autorização de residência em situações extraordinárias, nas quais não sejam aplicáveis as disposições previstas no artigo 122.º, nem as da Lei do Asilo. Tais situações extraordinárias devem ter por base razões de interesse nacional, razões humanitárias, ou razões de interesse público decorrentes do exercício de uma atividade relevante no domínio científico, cultural, desportivo, económico ou social.
Releva para a aplicação deste artigo a leitura do Decreto Regulamentar n.º 84/2007, de 05 de novembro, que estabelece no seu artigo 62.º/4 que se deve considerar “ponderadas as circunstâncias concretas do caso, como razões humanitárias a inserção no mercado laboral por um período superior a um ano”.
Portanto, o caminho do artigo 123.º, sendo possível provar o caráter humanitário (a inserção no mercado laboral por mais de 12 meses), poderá ser outra avenida para a regularização das situações administrativas que ficaram pendentes (pela falta de manifestação de interesse) desde 04 de junho. Contudo, importa destacar que, diferentemente da redação que tínhamos nas manifestações de interesse, não há um direito à autorização de residência. O artigo 123.º prevê uma possibilidade que deverá ser analisada e decidida, com base numa discricionariedade, pelo membro do Governo responsável pela área das migrações em Portugal.
Por fim, a alteração realizada ao regime transitório pela Lei n.º 40/2024, de 7 de novembro permite equilibrar a necessidade de mão-de-obra para determinados setores da economia com a proteção do trabalhador estrangeiro, que poderá exercer a sua atividade com a garantia de ver a sua situação migratória regularizada.
O novo regime transitório entrará em vigor no dia 08 de novembro de 2024, e a equipa da FiO Legal voltará em breve com um texto a analisar a aplicação deste regime. Siga-nos e acompanhe a nossa análise.